Por Alex Martins Moraes e Juliana Mesomo
As ideias de defender,
ocupar, retomar, etc. o que é público têm motivado alguns grupos a intervir em
determinados lugares da cidade de Porto Alegre. Estas ações festivas pretendem
contestar a forma como as autoridades municipais vêm administrando esses
espaços. Os cartazes levados pelos manifestantes ao Largo Glênio Peres, ao
Parque da Redenção e ao Paço Municipal denunciam o cerceamento dos seus usos
possíveis, sua privatização. Se estes movimentos conseguem identificar com
clareza a lógica subjacente ao atual modelo de “gestão” urbana, faltaria ainda
avaliar os conteúdos e efeitos das suas próprias práticas de/na cidade. Por
detrás das manifestações promovidas parece pairar uma noção mais ou menos
abstrata de “espaço público”. Talvez seja justamente o caráter abstrato das
consignas que garante, em cada ato, a presença de um público tão heterogêneo –
pelo menos à primeira vista. Mas o que é, afinal, o “espaço público” que se
pretende “defender”? É algo que realmente existe, como uma coisa que “está ali”?
O que ele integra ou exclui? Quem o
enuncia, como e para quê?
Antes de qualquer coisa
é preciso devolver o espaço público ao seu lugar, o de ideologia. Esta é uma
postura necessária se não quisermos nos contentar com bandeiras políticas
estanques para terminar fazendo o jogo dos urbanistas de plantão, sempre dispostos
a ensinar-nos como usar “adequadamente” a cidade. Mas o que significa dizer que
“espaço público” é uma construção ideológica? Significa, nada mais, entendê-lo
como uma ferramenta discursiva construída para legitimar determinadas formas de
apropriação coletiva dos lugares. Assim, quando reivindicamos e nos propomos a
defender o espaço público, estamos dizendo algo sobre nós mesmos, sobre as
práticas e moralidades que achamos convenientes para fundamentar o convívio
social. “Espaço público”, portanto, consiste num conjunto de regras, valores e
posturas que pessoas e instituições procuram introduzir no plano do real de
acordo com seus próprios interesses e lançando mão de todos os meios ao seu
alcance.
O primeiro ato da Defesa
Pública da Alegria culminou com um desagravo violento à instalação do mascote
da Copa do Mundo/Coca-Cola em pleno Centro da cidade. Foi então que a força
policial e os meios de comunicação nos confrontaram com a sua própria concepção
de espaço público. Para eles as ruas de Porto Alegre são o cenário do encontro
entre grupos sociais que, apesar de manter interesses antagônicos entre si,
devem manifestar-se pacificamente e argumentar racionalmente, sob a tutela do
Estado neutro, capaz de ouvir a todos. Notamos que a premissa fundamental para
a ocupação ideal deste “espaço público” era a seguinte: a violência não está
permitida e, se usada – pasmem! – pode ser reprimida violentamente.
Essa experiência
pública de pedagogia policial e midiática nos fez concluir que devemos abrir
mão do conflito e da violência, em nome de uma “cidade amável e bem cuidada”. Bem
aprendida a lição, depois do episódio do Tatu nos tornamos multiplicadores das
práticas de bem (con)viver. Agora vamos às ruas mostrar a todos que queiram ver
– especialmente a “opinião pública” – como o
bom-cidadão-de-classe-média-(branco)-bem asseado-sorridente pode ser inclusive
útil para a difusão dos valores cívicos e a promoção da segurança urbana. No
ato de defesa da redenção (30/11/2012), em frente ao Araújo Viana, o que
aconteceu foi uma aula pública de civismo: ninguém pensou em cruzar qualquer
cerca, limpamos todo o lixo e celebramos a paz social e a endogamia de classe.
Até as grades em torno do auditório, razão maior de nosso descontentamento,
foram incorporadas ao mobiliário urbano, convertidas num criativo e inusitado
estacionamento de bicicletas. No fim das contas, em que ponto a nossa atual ideia
de espaço público confronta aquela operada pela mídia e pelo poder municipal?
Essa didática do
civismo – que ajudamos a implementar com rituais em forma de festas e
piqueniques destinados a sacralizar o parque e as grades, a exorcizar a cidade
de toda presença conflitiva e a convertê-la, finalmente, em “espaço público” –
serve de suporte, ao mesmo tempo ético e estético, que justifica e legitima o
que mais adiante se tornarão normativas para a “conduta cívica”. Não é difícil
imaginar quem fica excluído desse “espaço público” que estamos querendo
instituir, desse “balé cordial de ciclistas sorridentes, de recolhedores de
dejetos de animais e de passantes educados, incapazes de jogar uma ponta de
cigarro no chão” (Ver Manuel Delgado, “O Mito do Espaço Público”: http://www.goethe.de/mmo/priv/2972847-STANDARD.pdf).
A Defesa Pública da
Alegria escolheu o formato “festa ao ar livre” para mediatizar sua concepção de
“espaço público”, para torná-la concreta, material e vivível. Isto é louvável,
já que a festa e a revolta são duas coisas muito parecidas, até mesmo
homólogas. O ritual festivo pode conduzir ao limiar da ordem; uma vez
ultrapassado esse limiar, as coisas dificilmente voltam a ser como eram. Embalado
por cantorias e danças, o esvaziamento do Tatu derrubou o consenso estabelecido
em torno da ideia de que a Copa do Mundo era um “bem-em-si” e, portanto, algo indiscutível.
As forças necessárias para essa irrupção violenta e transformadora do dissenso
foram sendo acumuladas no decorrer da festa, através das interações,
convergências, compromissos e engajamentos possibilitados por ela. A festa fez
relampejar, ainda que fugazmente, a visão de outra cidade possível, engendrou
vida social e transformou as forças da ordem numa frágil alegoria. Neste
momento vimos desabar temporariamente a ideia de um “espaço público” que é
cenário de fluxo e uso, mas nunca de transgressão, intervenção, quebra,
destruição, modificação.
Infelizmente, a
ocupação da Redenção significou uma nítida inflexão da Defesa Pública da
Alegria em direção à apologia do “espaço público” pacificado. Será que o sangue
e o gás conseguiram restaurar as regras do “civismo” no seio do movimento? Será
que as grades do Araújo Viana impõem mais respeito e legitimidade que um boneco
de plástico instalado em pleno Centro? Ambos não são símbolos monumentais de uma
mesma lógica de gestão neoliberal e privatista? O fato é que a incorporação da
didática do civismo operou para suprimir, no interior deste coletivo
heterogêneo, as formas de dissidência subversiva que o discurso da ordem havia
rotulado de “violentas” ou “incívicas” – e, portanto, ilegítimas, posto que
desmentem ou desacatam o normal fluir da vida pública, declarada amável e não-conflitiva.
Enquanto o argumento do civismo e a fé num “espaço público” pacificado forem
nosso salvo-conduto para barganhar a anuência da “opinião pública”, podemos
abrir mão de qualquer horizonte transformador. A festa será a eterna celebração
de um dócil ritual de desacordo, mas jamais se tornará revolta.
2 comentários:
Perfeito. Ainda relerei, com bastante calma. Bela contribuição ao debate.
Sala
Valeu, Sala! Se tiveres outras contribuições ao debate, o espaço do blog está sempre aberto.
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