quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Da festa à revolta. Sobre a necessidade de abandonar a didática do civismo.


Por Alex Martins Moraes e Juliana Mesomo

As ideias de defender, ocupar, retomar, etc. o que é público têm motivado alguns grupos a intervir em determinados lugares da cidade de Porto Alegre. Estas ações festivas pretendem contestar a forma como as autoridades municipais vêm administrando esses espaços. Os cartazes levados pelos manifestantes ao Largo Glênio Peres, ao Parque da Redenção e ao Paço Municipal denunciam o cerceamento dos seus usos possíveis, sua privatização. Se estes movimentos conseguem identificar com clareza a lógica subjacente ao atual modelo de “gestão” urbana, faltaria ainda avaliar os conteúdos e efeitos das suas próprias práticas de/na cidade. Por detrás das manifestações promovidas parece pairar uma noção mais ou menos abstrata de “espaço público”. Talvez seja justamente o caráter abstrato das consignas que garante, em cada ato, a presença de um público tão heterogêneo – pelo menos à primeira vista. Mas o que é, afinal, o “espaço público” que se pretende “defender”? É algo que realmente existe, como uma coisa que “está ali”?  O que ele integra ou exclui? Quem o enuncia, como e para quê?

Antes de qualquer coisa é preciso devolver o espaço público ao seu lugar, o de ideologia. Esta é uma postura necessária se não quisermos nos contentar com bandeiras políticas estanques para terminar fazendo o jogo dos urbanistas de plantão, sempre dispostos a ensinar-nos como usar “adequadamente” a cidade. Mas o que significa dizer que “espaço público” é uma construção ideológica? Significa, nada mais, entendê-lo como uma ferramenta discursiva construída para legitimar determinadas formas de apropriação coletiva dos lugares. Assim, quando reivindicamos e nos propomos a defender o espaço público, estamos dizendo algo sobre nós mesmos, sobre as práticas e moralidades que achamos convenientes para fundamentar o convívio social. “Espaço público”, portanto, consiste num conjunto de regras, valores e posturas que pessoas e instituições procuram introduzir no plano do real de acordo com seus próprios interesses e lançando mão de todos os meios ao seu alcance.

O primeiro ato da Defesa Pública da Alegria culminou com um desagravo violento à instalação do mascote da Copa do Mundo/Coca-Cola em pleno Centro da cidade. Foi então que a força policial e os meios de comunicação nos confrontaram com a sua própria concepção de espaço público. Para eles as ruas de Porto Alegre são o cenário do encontro entre grupos sociais que, apesar de manter interesses antagônicos entre si, devem manifestar-se pacificamente e argumentar racionalmente, sob a tutela do Estado neutro, capaz de ouvir a todos. Notamos que a premissa fundamental para a ocupação ideal deste “espaço público” era a seguinte: a violência não está permitida e, se usada – pasmem! – pode ser reprimida violentamente.

Essa experiência pública de pedagogia policial e midiática nos fez concluir que devemos abrir mão do conflito e da violência, em nome de uma “cidade amável e bem cuidada”. Bem aprendida a lição, depois do episódio do Tatu nos tornamos multiplicadores das práticas de bem (con)viver. Agora vamos às ruas mostrar a todos que queiram ver – especialmente a “opinião pública” – como o bom-cidadão-de-classe-média-(branco)-bem asseado-sorridente pode ser inclusive útil para a difusão dos valores cívicos e a promoção da segurança urbana. No ato de defesa da redenção (30/11/2012), em frente ao Araújo Viana, o que aconteceu foi uma aula pública de civismo: ninguém pensou em cruzar qualquer cerca, limpamos todo o lixo e celebramos a paz social e a endogamia de classe. Até as grades em torno do auditório, razão maior de nosso descontentamento, foram incorporadas ao mobiliário urbano, convertidas num criativo e inusitado estacionamento de bicicletas. No fim das contas, em que ponto a nossa atual ideia de espaço público confronta aquela operada pela mídia e pelo poder municipal?

Essa didática do civismo – que ajudamos a implementar com rituais em forma de festas e piqueniques destinados a sacralizar o parque e as grades, a exorcizar a cidade de toda presença conflitiva e a convertê-la, finalmente, em “espaço público” – serve de suporte, ao mesmo tempo ético e estético, que justifica e legitima o que mais adiante se tornarão normativas para a “conduta cívica”. Não é difícil imaginar quem fica excluído desse “espaço público” que estamos querendo instituir, desse “balé cordial de ciclistas sorridentes, de recolhedores de dejetos de animais e de passantes educados, incapazes de jogar uma ponta de cigarro no chão” (Ver Manuel Delgado, “O Mito do Espaço Público”: http://www.goethe.de/mmo/priv/2972847-STANDARD.pdf).

A Defesa Pública da Alegria escolheu o formato “festa ao ar livre” para mediatizar sua concepção de “espaço público”, para torná-la concreta, material e vivível. Isto é louvável, já que a festa e a revolta são duas coisas muito parecidas, até mesmo homólogas. O ritual festivo pode conduzir ao limiar da ordem; uma vez ultrapassado esse limiar, as coisas dificilmente voltam a ser como eram. Embalado por cantorias e danças, o esvaziamento do Tatu derrubou o consenso estabelecido em torno da ideia de que a Copa do Mundo era um “bem-em-si” e, portanto, algo indiscutível. As forças necessárias para essa irrupção violenta e transformadora do dissenso foram sendo acumuladas no decorrer da festa, através das interações, convergências, compromissos e engajamentos possibilitados por ela. A festa fez relampejar, ainda que fugazmente, a visão de outra cidade possível, engendrou vida social e transformou as forças da ordem numa frágil alegoria. Neste momento vimos desabar temporariamente a ideia de um “espaço público” que é cenário de fluxo e uso, mas nunca de transgressão, intervenção, quebra, destruição, modificação.

Infelizmente, a ocupação da Redenção significou uma nítida inflexão da Defesa Pública da Alegria em direção à apologia do “espaço público” pacificado. Será que o sangue e o gás conseguiram restaurar as regras do “civismo” no seio do movimento? Será que as grades do Araújo Viana impõem mais respeito e legitimidade que um boneco de plástico instalado em pleno Centro? Ambos não são símbolos monumentais de uma mesma lógica de gestão neoliberal e privatista? O fato é que a incorporação da didática do civismo operou para suprimir, no interior deste coletivo heterogêneo, as formas de dissidência subversiva que o discurso da ordem havia rotulado de “violentas” ou “incívicas” – e, portanto, ilegítimas, posto que desmentem ou desacatam o normal fluir da vida pública, declarada amável e não-conflitiva. Enquanto o argumento do civismo e a fé num “espaço público” pacificado forem nosso salvo-conduto para barganhar a anuência da “opinião pública”, podemos abrir mão de qualquer horizonte transformador. A festa será a eterna celebração de um dócil ritual de desacordo, mas jamais se tornará revolta.


2 comentários:

Salito disse...

Perfeito. Ainda relerei, com bastante calma. Bela contribuição ao debate.
Sala

Alex Moraes disse...

Valeu, Sala! Se tiveres outras contribuições ao debate, o espaço do blog está sempre aberto.