sábado, 20 de julho de 2013

Exorbitante

não me foi dada nenhuma originalidade
não sou único
não surpreendo sozinho
tropeço entre análises
inconclusas
se bem que.

auto-análises
confusas, despencadas por
falta de nexo e parâmetro
à espera da batuta alheia,
não a de cualquiera,
sim a de quem escuta
bem arraigado
minha profusão de banalidades

não posso ser crítico
assim, quietinho,
na minha
sem a batuta essa
que enraíza a torpeza
numa ontologia vivaz.

desorbitado, petulante,
exorbitante, pretencioso
o que eu quero mesmo é
pensar-me através de todos
é salvar-me através de todos
(ou morrer nas suas mãos)

quero que as assembleias gerais
de estudantes e trabalhadores
modulem minhas sinapses
me infundam razão

Alex Moraes 07/2013

sábado, 6 de julho de 2013

passa estranho

a melancolia chove no tempo
um contraste amargo e frio
como esse inverno que cheira a lenha
no centro de Montevidéu

chovido de melancolia o tempo
existe no cerne do minuto vivido
bem prosaico, nada épico

chovido de melancolia o tempo
pode ser visto, podemos vê-lo dar
voltas na sala, fluir entre duas janelas

a melancolia se aloja no
tempo e o sentimos ex-discreto
como a garganta inflamada

às vezes, feita tempo, ela
(a melancolia) se instala na frente
                          [da porta
sobre o piso
nas dobras do lençol
no sofá
na cozinha natureza morta
sobre a mesa de vidro
assim, quieta,
dolorindo tudo

chovido de melancolia o tempo
passa     estranho


Alex Moraes - 07/13

terça-feira, 2 de julho de 2013

torpólis anoitecida

luaviza o torpor dos membros.
também assim o das vaginas.

o verbo ousa dia arfeja arrisca
augúrios dissipa decepa angústia.

estreitam-se os corpos se
amassam uns contra outros.

antagonismo lascivo antigonismo
e efêmera ciência:

materialismo do imaginado?
assombrologia? antonimologia do conceito?

E pela manhã não mais voragem
às custas do improvável torpólis reatará
[o impossível

Alex Moraes - 07/2013

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Da festa à revolta. Sobre a necessidade de abandonar a didática do civismo.


Por Alex Martins Moraes e Juliana Mesomo

As ideias de defender, ocupar, retomar, etc. o que é público têm motivado alguns grupos a intervir em determinados lugares da cidade de Porto Alegre. Estas ações festivas pretendem contestar a forma como as autoridades municipais vêm administrando esses espaços. Os cartazes levados pelos manifestantes ao Largo Glênio Peres, ao Parque da Redenção e ao Paço Municipal denunciam o cerceamento dos seus usos possíveis, sua privatização. Se estes movimentos conseguem identificar com clareza a lógica subjacente ao atual modelo de “gestão” urbana, faltaria ainda avaliar os conteúdos e efeitos das suas próprias práticas de/na cidade. Por detrás das manifestações promovidas parece pairar uma noção mais ou menos abstrata de “espaço público”. Talvez seja justamente o caráter abstrato das consignas que garante, em cada ato, a presença de um público tão heterogêneo – pelo menos à primeira vista. Mas o que é, afinal, o “espaço público” que se pretende “defender”? É algo que realmente existe, como uma coisa que “está ali”?  O que ele integra ou exclui? Quem o enuncia, como e para quê?

Antes de qualquer coisa é preciso devolver o espaço público ao seu lugar, o de ideologia. Esta é uma postura necessária se não quisermos nos contentar com bandeiras políticas estanques para terminar fazendo o jogo dos urbanistas de plantão, sempre dispostos a ensinar-nos como usar “adequadamente” a cidade. Mas o que significa dizer que “espaço público” é uma construção ideológica? Significa, nada mais, entendê-lo como uma ferramenta discursiva construída para legitimar determinadas formas de apropriação coletiva dos lugares. Assim, quando reivindicamos e nos propomos a defender o espaço público, estamos dizendo algo sobre nós mesmos, sobre as práticas e moralidades que achamos convenientes para fundamentar o convívio social. “Espaço público”, portanto, consiste num conjunto de regras, valores e posturas que pessoas e instituições procuram introduzir no plano do real de acordo com seus próprios interesses e lançando mão de todos os meios ao seu alcance.

O primeiro ato da Defesa Pública da Alegria culminou com um desagravo violento à instalação do mascote da Copa do Mundo/Coca-Cola em pleno Centro da cidade. Foi então que a força policial e os meios de comunicação nos confrontaram com a sua própria concepção de espaço público. Para eles as ruas de Porto Alegre são o cenário do encontro entre grupos sociais que, apesar de manter interesses antagônicos entre si, devem manifestar-se pacificamente e argumentar racionalmente, sob a tutela do Estado neutro, capaz de ouvir a todos. Notamos que a premissa fundamental para a ocupação ideal deste “espaço público” era a seguinte: a violência não está permitida e, se usada – pasmem! – pode ser reprimida violentamente.

Essa experiência pública de pedagogia policial e midiática nos fez concluir que devemos abrir mão do conflito e da violência, em nome de uma “cidade amável e bem cuidada”. Bem aprendida a lição, depois do episódio do Tatu nos tornamos multiplicadores das práticas de bem (con)viver. Agora vamos às ruas mostrar a todos que queiram ver – especialmente a “opinião pública” – como o bom-cidadão-de-classe-média-(branco)-bem asseado-sorridente pode ser inclusive útil para a difusão dos valores cívicos e a promoção da segurança urbana. No ato de defesa da redenção (30/11/2012), em frente ao Araújo Viana, o que aconteceu foi uma aula pública de civismo: ninguém pensou em cruzar qualquer cerca, limpamos todo o lixo e celebramos a paz social e a endogamia de classe. Até as grades em torno do auditório, razão maior de nosso descontentamento, foram incorporadas ao mobiliário urbano, convertidas num criativo e inusitado estacionamento de bicicletas. No fim das contas, em que ponto a nossa atual ideia de espaço público confronta aquela operada pela mídia e pelo poder municipal?

Essa didática do civismo – que ajudamos a implementar com rituais em forma de festas e piqueniques destinados a sacralizar o parque e as grades, a exorcizar a cidade de toda presença conflitiva e a convertê-la, finalmente, em “espaço público” – serve de suporte, ao mesmo tempo ético e estético, que justifica e legitima o que mais adiante se tornarão normativas para a “conduta cívica”. Não é difícil imaginar quem fica excluído desse “espaço público” que estamos querendo instituir, desse “balé cordial de ciclistas sorridentes, de recolhedores de dejetos de animais e de passantes educados, incapazes de jogar uma ponta de cigarro no chão” (Ver Manuel Delgado, “O Mito do Espaço Público”: http://www.goethe.de/mmo/priv/2972847-STANDARD.pdf).

A Defesa Pública da Alegria escolheu o formato “festa ao ar livre” para mediatizar sua concepção de “espaço público”, para torná-la concreta, material e vivível. Isto é louvável, já que a festa e a revolta são duas coisas muito parecidas, até mesmo homólogas. O ritual festivo pode conduzir ao limiar da ordem; uma vez ultrapassado esse limiar, as coisas dificilmente voltam a ser como eram. Embalado por cantorias e danças, o esvaziamento do Tatu derrubou o consenso estabelecido em torno da ideia de que a Copa do Mundo era um “bem-em-si” e, portanto, algo indiscutível. As forças necessárias para essa irrupção violenta e transformadora do dissenso foram sendo acumuladas no decorrer da festa, através das interações, convergências, compromissos e engajamentos possibilitados por ela. A festa fez relampejar, ainda que fugazmente, a visão de outra cidade possível, engendrou vida social e transformou as forças da ordem numa frágil alegoria. Neste momento vimos desabar temporariamente a ideia de um “espaço público” que é cenário de fluxo e uso, mas nunca de transgressão, intervenção, quebra, destruição, modificação.

Infelizmente, a ocupação da Redenção significou uma nítida inflexão da Defesa Pública da Alegria em direção à apologia do “espaço público” pacificado. Será que o sangue e o gás conseguiram restaurar as regras do “civismo” no seio do movimento? Será que as grades do Araújo Viana impõem mais respeito e legitimidade que um boneco de plástico instalado em pleno Centro? Ambos não são símbolos monumentais de uma mesma lógica de gestão neoliberal e privatista? O fato é que a incorporação da didática do civismo operou para suprimir, no interior deste coletivo heterogêneo, as formas de dissidência subversiva que o discurso da ordem havia rotulado de “violentas” ou “incívicas” – e, portanto, ilegítimas, posto que desmentem ou desacatam o normal fluir da vida pública, declarada amável e não-conflitiva. Enquanto o argumento do civismo e a fé num “espaço público” pacificado forem nosso salvo-conduto para barganhar a anuência da “opinião pública”, podemos abrir mão de qualquer horizonte transformador. A festa será a eterna celebração de um dócil ritual de desacordo, mas jamais se tornará revolta.


domingo, 7 de outubro de 2012

Defesa da Alegria, pensamento único e o "esvaziamento" do consenso

Alex Martins Moraes

A Defesa da Alegria e o debate necessário

Estive presente na Defesa Pública da Alegria, dia 4 de outubro de 2012 (quinta-feira). Foi um dos eventos mais cativantes de que participei nos últimos tempos. Durante boa parte da noite, uma composição heterogênea de movimentos culturais, sociais, grupos musicais e de teatro fez emergir um belo espaço de interação criativa que me permitiu imaginar a cidade de Porto Alegre para além do estado de sítio neoliberal implantado pela atual administração municipal. Só por esta razão, por ter sido um movimento amplo e contagiante, que se dispôs a viver “uma outra cidade possível” em pleno  Centro privatizado da capital gaúcha, a Defesa da Alegria já mereceria o apoio firme e convicto de todos os setores democráticos.

Por volta das 23h, o movimento que havia começado na Praça Montevidéu se estendeu ao largo Glênio Peres, abraçando e fazendo tombar o boneco inflável que representava o mascote da Copa do Mundo. Em alguns minutos, o símbolo de uma alegria plástica e excludente converteu-se na imagem potente que afrontou o pensamento único e o falso consenso produzido em torno das obras da Copa do Mundo. A “queda” do tatu bola foi um ato legítimo de afirmação da importância do espaço público, de denúncia das arbitrariedades e exclusões inerentes às parcerias público-privadas.  O esvaziamento do tatu obrigou a aparelhagem repressiva da Prefeitura de Porto Alegre e do Governo do Estado a escancarar, pornograficamente, no Centro da capital, um ânimo autoritário que pulsava sorrateiro, há meses, em diversos bairros populares. Lá, bem longe dos holofotes e dos microfones da mídia gorda, centenas de famílias vêm sofrendo todo o tipo de pressão econômica e violência simbólica para deixarem suas casas em favor do “progresso” urbano representado pelas obras da Copa.

A Defesa da Alegria inaugurou, no dia 4 de outubro, um novo debate, ou melhor, tornou-o público, contribuiu para que se generalizasse. Já não é moralmente possível exaltar o desenvolvimento econômico trazido pela Copa do Mundo sem se perguntar por seu lado escuro e suprimido; pelas praças higienizadas – onde não há mais feiras ou eventos; pelas famílias mais pobres que são despejadas ou expulsas para bairros distantes em decorrência da especulação imobiliária e do baixíssimo bônus moradia; pela vida noturna desertificada, que só faz aumentar a sensação de insegurança daqueles que se “atrevem” a utilizar a cidade, suas ruas e avenidas.

Quem merece sofrer?

No dia 5 de outubro (sexta-feira), as notícias da manifestação realizada na Praça Montevidéu repercutiram nas redes sociais e em diversos órgãos de imprensa. Fiquei impressionado ao constatar que, principalmente na televisão – reduto monopolizado por grandes grupos econômicos que vivem, desde a ditadura militar, uma relação promíscua com o Estado –, ecoaram com força, sem nenhum contraponto, as vozes do autoritarismo e da morte. Realmente os grandes meios de comunicação consistem, hoje, numa ameaça concreta às grandes ambições democráticas da Constituição Cidadã de 1988. A mega-imprensa faz precipitar sobre a sociedade brasileira uma cultura de debate absolutamente autoritária, que, sob o pretexto de enunciar a “sensatez” e os “fatos”, faz apologia ao crime e exorta as polícias a estabelecerem “zonas de exceção” onde é permitido espancar, humilhar, trucidar.

“Zona de exceção”, foi nisso que se transformou o Largo Glênio Peres depois da queda do mascote da Copa. Eu nunca havia presenciado tamanha ignomínia. Enquanto tentava fotografar dois policiais que agrediam brutalmente um jovem, sem que este tivesse qualquer possibilidade de defender-se, recebi pancadas na cabeça e nas mãos e tive minha câmera quebrada. Isso aconteceu com outras tantas pessoas ao longo dos quinze minutos em que a Brigada Militar e a Guarda Municipal, completamente descontroladas, golpeavam cabeças – esta arma perigosa – e corpos, pontilhando as ruas centrais de poças de sangue. Mas não só na violência física se ampara a repressão. Não foram poucas as situações em que, ao espancarem mulheres, os policiais destilavam um profundo ódio de gênero, chamando-as de “vagabundas” e dizendo que elas fossem “lavar uma louça” e “procurar seus machos”.

E o que fazia Lasier Martins – esta carta marcada do reacionarismo gaúcho – em seu exercício diário de escatologia verbal no Jornal do Almoço? Referendava a ação da polícia, desqualificava o movimento de defesa da alegria e classificava como “terrorista” o protesto multitudinário da noite anterior. O que significa afirmar que alguém é “terrorista”? Ora, significa dizer que esta pessoa está fora de qualquer jurisdição, não goza de nenhum direito ou garantia, é uma vida nua a mercê de todo o tipo de acosso mortífero. A alquimia que transforma qualquer oposição em terrorismo é uma prática sempre a disposição dos governos autoritários e das máquinas de guerra imperialistas. Geralmente, o vocábulo “terrorista” vem acompanhado de outro adjetivo igualmente útil àquelas estratégias interessadas em impor o pensamento único: “fanático”. Quando há fanatismo, não há razão, não existe reflexividade, apenas irracionalidade. Não precisa, portanto, haver diálogo. Qualquer dissidência passa a ser animalizada, desumanizada, a tal ponto que se torna “razoável” justificar sua aniquilação e sofrimento em nome da defesa de um brinquedo inflável instalado no meio da via pública. Este é o tipo de operação retórica alentada pelos mesmos sujeitos que, amanhã ou depois, estarão afirmando – com o beneplácito da mídia gorda – seu eterno compromisso com a liberdade de expressão, os direitos humanos e as garantias individuais.

A Defesa Pública da Alegria foi e é uma contribuição necessária para a prática social pluralista. Sua emergência nas ruas da capital convida @s portoalegrenses a refletirem criticamente sobre os processos sociais que, hoje, convertem nossa cidade num espaço de conflitos, assimetrias e desigualdade. Mais além disso, o movimento da Praça Montevidéu consagrou táticas eficazes de luta social, as quais só tendem a enriquecer repertório estratégico dos processos coletivos de resistência que vicejam na cidade. A este respeito, era quase comovedor ler as queixas que o comandante da Bigada Militar fez à reportagem do Sul 21. Nelas, ele lamentava o absurdo de um movimento que se organiza através de redes dispersas – algumas virtuais –, tornando impossível o trabalho de identificação e coerção dos “envolvidos”. Depois desta melancólica constatação, vinha o aviso: da próxima vez a repressão será ainda mais dura. Ora, se até mesmo um policial reconhece que pode haver próxima vez é porque a defesa da alegria não foi uma ação isolada. Pelo contrário, consistiu na materializaçao de insatisfações diversas e generalizadas que seguem vigentes e continuarão repercutindo na esfera pública. Definitivamente, o frágil consenso acrítico performatizado pela prefeitura e pelos meios de comunicação hegemônicos em torno da Copa do Mundo foi “esvaziado”. Com a ágora reaberta – de direito e de fato –, o debate está lançado.


Algumas fotos que realizei no local até ter minha câmera destruída pela Brigada Militar:












domingo, 26 de fevereiro de 2012

Dos "lattes points" a uma dissidência possível




Têm se tornado cada vez mais frequentes as críticas ao atual modelo de funcionamento do sistema de pós-graduação no Brasil, principalmente no que diz respeito à sua subordinação à política de Ciência e Tecnologia e à sua dinâmica fortemente produtivista. Professores se queixam de que precisam realizar esforços hercúleos para cumprir com as obrigações profissionais sem deixar de responder aos os padrões gerais de avaliação da produtividade docente impostos pela CAPES (em programas nota 6 ou 7, espera-se que cada professor publique, em média, 1,5 artigos por ano em revistas internacionais conceito A). Já os estudantes, alertam para a defasagem entre a expansão de vagas na pós-graduação e o número de bolsas de estudo disponíveis. Eles manifestam, também, uma inevitável frustração diante da estrutura acadêmica que, movida por jogos de prestígio e poder, imerge em transe profundo, alheio a qualquer preocupação com a importância social do conhecimento científico.

Nas “hard sciences”, a palavra de ordem é "inovação" e os critérios para avaliação do mérito encontram-se suscetíveis a uma euforia tecnológica que suspende quaisquer indagações sobre a possibilidade de assimilação dos progressos científicos a planos globais de desenvolvimento societário. Nas ciências humanas e sociais, falar em "inovação", do ponto de vista do conteúdo da produção, não faz muito sentido. Nem por isso, o slogan perde seu poder de sedução. Se a ideia de deixar um pouco de lado o confortável e profícuo diálogo com os "clássicos" para aventurar-se nas águas dinâmicas do mercado e das consultorias ainda provoca certa restrição entre os cientistas sociais, a proposta de "inovar" nos moldes de apresentação das dissertações e teses soa como o canto das sereias. Em vez de longas monografias, por que não apostar em exposições mais versáteis, algo no estilo de um artigo compatível com as normas internacionais de publicação? Realmente o que parece dinamizar as características da produção de conhecimento é a própria vontade de produzir racionalizada e eficientemente. Grosso modo: produção pela produção. Mais grosso modo ainda, P-LP-P, ou seja, produção–"lattes points" (para usar a inspirada expressão formulada por uma colega)–produção. Eis o círculo virtuoso (ou seria círculo vicioso?) do conhecimento científico.

Dos comentários feitos até aqui, não é difícil concluir que o impulso produtivista, catalizado pelas exortações à inovação e sustentado pelas tecnologias vigentes de avaliação, é fonte principal de dilemas éticos e políticos que se alojam no cerne dos debates ocorridos dentro das instituições brasileiras destinadas ao ensino superior. Nesta breve crônica, me restringirei a tecer alguns comentários a respeito do impacto do produtivismo num campo disciplinar como o da antropologia, com o qual estou mais familiarizado em decorrência da minha condição de estudante de mestrado nessa área.

Em primeiro lugar, proponho uma brevíssima digressão que nos levará à década de 1970, quando a pós-graduação brasileira conheceu um dos mais importantes e definitivos impulsos governamentais para o seu desenvolvimento. Corria a ditadura militar no país. Em todas as grandes universidades públicas, irrompiam processos de expulsão e aposentadoria compulsória de um número importante de professores, oriundos das mais diversas áreas do saber. Em meados da década anterior, intelectuais destacados no cenário científico nacional já haviam deixado o país rumo ao exílio político. Alguns foram acolhidos em universidades estrangeiras, outros avançaram num necessário engajamento social. O caso emblemático deste último grupo foi o antropólogo Darcy Ribeiro, que depois de 1964, tornou-se conselheiro político de Salvador Allende no Chile e, mais tarde, deu aulas na Universidad de la República, em Montevidéu, onde escreveu o livro A Universidade Latino-americana. Após experienciar três golpes de Estado, Darcy regressou ao Brasil. Aqui, ele encontrou um sistema de ensino completamente reformulado. Reagiu mal às mudanças, soltou gritos iracundos que hoje ressoam no anedotário da antropologia brasileira. Darcy Ribeiro não suportou a tremenda complexificação do horizonte empírico da antropologia, espraiado muito além do indigenismo, matizado por estudos sobre urbanização, identidades emergentes e outros fenômenos associados não só ao radical processo de industrialização, mas também ao surgimento de uma arena política marcada por novos léxicos jurídicos e outros sujeitos de direito, outros "outros". Talvez o descontentamento de Darcy dissesse muito sobre a reorganização das relações de poder e do sistema de prestígio institucional na antropologia brasileira, mas não se resumia apenas a isso.

A reforma universitária da ditadura militar brasileira, na década de setenta, caiu em mãos conservadoras – como era de se esperar – e perdeu em muito seu potencial renovador (se é que tinha algum). A pós-graduação investiu um caráter elitista e ficou submetida à tutela externa. Abriu-se uma brecha decisiva entre os cursos de graduação e os níveis mais avançados de formação acadêmica. De um lado do abismo, os cursos superiores, destinados à formação cultural associada com capacitação técnica. Do outro lado, a pós-graduação, entendida como instância privilegiada da pesquisa e da legítima produção do conhecimento. O "benefício colateral" da reforma implementada pela ditadura foi a elaboração de um sistema mais ou menos coerente de instituições e agências de financiamento que garantiram a sustentabilidade da pós-graduação brasileira. Isto vem sendo chamado por certos acadêmicos de "profissionalização da atividade intelectual". Darcy Ribeiro retornou ao Brasil em 1976, quando o operário Manuel Filho foi "suicidado" pelo DOI CODI paulista. Nesse famigerado ano, a CAPES dava a conhecer seu flamante Sistema de Avaliação da Pós Graduação. Estavam criados os dispositivos governamentais que sintonizariam a pós-graduação com o processo de expansão da base material necessária à produção capitalista.

É claro que, em meio a toda essa reestruturação do Ensino Superior, o papel destinado às ciências humanas não foi exatamente importante. A noção de projeto nacional de desenvolvimento propalada pelo regime autoritário restringia-se a um enfoque tecnicista, onde importava muito pouco conhecer, sistematicamente, os impactos sócio-culturais da transformação econômica no presente do país do futuro. Mas nem tudo era um vale de lágrimas. Desenvolta das “amarras” do marxismo e do funcionalismo, a ciência social brasileira podia lançar-se a um contente carnaval de criatividade e experimentação. E se os milicos eram heróis, os antropólogos, assaz conhecedores da ciência dos arrabaldes, fariam as vezes de malandros. Esta lógica, em que pese sua aparente ingenuidade, produziu situações interessantes que precisam ser reconhecidas e valorizadas. O espaço da pós-graduação em antropologia privilegiou o incremento da produção científica e mesmo o aparecimento de uma tendência crítica que, distante de ser hegemônica, permitiu a realização de pesquisas consistentes cujo valor foi e é inestimável para a construção e aprofundamento da democracia no Brasil.

Mas algo parece ter ficado pelo caminho. Algo muito importante. Se bem me lembro -- e este relato nem de longe pretende ser literal --, Otávio Velho, em uma conferência dada em 2009 no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da UFRGS, lamentava que toda a mobilização em prol da profissionalização da disciplina tivesse redundado numa aparelhagem acadêmica muito pouco dada à interdisciplinaridade e ao diálogo com outros setores da sociedade. Uma aparelhagem acadêmica endogâmica, às voltas com o paradigma produtivista, queixosa do pouco valor que o governo lhe reserva e, aventuro-me a dizer, confusa a respeito do seu real potencial crítico. Sem dúvidas aquela fala de Otávio Velho, em 2009, estava influenciada por sua recente experiência no Fórum “Ciências Humanas e Políticas Científicas, onde o presidente da CAPES, Jorge Guimarães, desafiou as associações científicas de humanas a trabalharem em um projeto para financiar pesquisas dispostas a pensar o Brasil na atualidade. Mas e agora? Já não havíamos emitido o atestado de óbito das grandes narrativas, dos amplos estudos exploratórios? O que fazer com a singularidade disciplinar construída a duras penas durante a ditadura militar?

Não raro, quando queremos justificar o porquê de utilizar o método etnográfico em determinado contexto e dispomos de poucas linhas para fazê-lo, usamos alguma fórmula do tipo: "perco em abrangência, mas ganho em profundidade". Reaproprio-me desta útil construção retórica para elaborar uma proposição em resposta à última questão do parágrafo anterior: utilizando a licença poética que minha condição de estudante autoriza, ciente de que perco em audiência, mas ganho em ousadia, sugiro que se trata, agora, de rechaçar qualquer disciplinarismo. A profissionalização dos antropólogos no seio do sistema universitário brasileiro teve um custo alto, capaz mesmo de colocar em xeque o êxito desta suposta façanha. Em primeiro lugar, a quase totalidade da produção de conhecimento promovida pela antropologia brasileira encontra-se, hoje, submetida a um estandarte geral de avaliação caracterizado pela (in)determinação quantitativa de toda a qualidade (ecos de 1976). Em segundo lugar, a canalização produtivista das dinâmicas disciplinares debilitou o único instrumento que permitiria à antropologia (ou aos antropólogos) enunciar alguma crítica crível das dinâmicas sociais atuais, a saber: a declarada aliança política no contexto da interlocução etnográfica. A este respeito, o antropólogo colombiano Eduardo Restrepo tece um agudo comentário que, se bem diz respeito à realidade do seu país, aplica-se com exatidão na conjuntura brasileira: "as antropologias hegemônicas confluem em uma postura cínica frente às tensões sociais do país. Suas preocupações radicam mais em emular as academias metropolitanas (principalmente a estadunidense) com suas modalidades produtivistas (agora enroupadas em noções de qualidade e internacionalização) onde as tensões sociais, no melhor dos casos, podem aparecer como objeto de um "paper" (assim mesmo, em inglês)" (ver entrevista com Eduardo Restrepo no boletim "A Tinta Crítica":http://antropologiacritica.wordpress.com/tinta-critica/). Por último, é impossível não reconhecer que a conversão da antropologia em disciplina acadêmica postergou qualquer expectativa de democratização das relações sociais ativadas na produção do conhecimento, deixando intactas certas genealogias institucionais e preservando uma atmosfera elitista em diversos programas de pós-graduação no país.

A antropologia, submetida ao paradigma do produtivismo, socializa os prejuízos em seu respectivo campo ao passo que mantém concentrados os benefícios associados a atividade acadêmica. Os docentes -- pressionados em seu trabalho pelo ônus da lógica da produtividade --, permanecem distanciados de qualquer projeto social mais amplo, ou daquilo que não diz respeito às suas preocupações imediatas (de produção). Mas eles recebem algum tipo de recompensa por isso, seja na forma de prestígio, reconhecimento ou bônus financeiros. Já as contrapartidas das políticas de educação superior que condicionam a produção docente, são a precarização do trabalho e a debilitação do processo educacional de maneira geral. Mas os prejuízos não param por aí. Os estudantes de antropologia, cujo número vem aumentando consideravelmente, não vislumbram nenhuma política de bolsas verdadeiramente generosa (na medida das grandes ambições que o discurso oficial atrela à pesquisa de pós-graduação). "Sem tesão não há produção", diziam os cartazes dos estudantes de mestrado em antropologia que paralisaram suas atividades durante uma semana, no ano de 2011, em Porto Alegre (movimento “paramos para pensar”).

Dito isto, fica difícil encontrar formas de atender ao chamado do presidente da CAPES a "pensar o Brasil na atualidade". A produção de um saber potente, crítico – e, por isso mesmo, socialmente útil – a partir da antropologia exige importantes reordenamentos, não apenas na constituição da disciplina, mas também nos parâmetros utilizados para avaliar seu desempenho. Não acredito que estes reordenamentos possam acontecer por si mesmos, assim como tampouco creio que todos os antropólogos estejam interessados em levá-los a cabo. Isto não muda o fato de que eles são fundamentais, caso os profissionais e estudantes que, hoje, se aventuram na área da antropologia pretendam criar as condições propícias para pensar com clareza o "Brasil na atualidade" (o Brasil na América-latina, no sistema-mundo; o Brasil e suas violências estruturais, desigualdades novas e velhas, o Brasil e suas epistemologias do Sul, etc., etc.).

Talvez a prática dissidente seja um caminho para explorar outras lealdades e alianças que conduzam a vias alternativas de legitimação da produção intelectual. Vias de legitimação onde interlocutores não-acadêmicos, antropólogos e outros cientistas sociais reforcem projetos políticos mútuos na esteira de uma práxis transformadora e propositiva que, sem negar a Universidade e a pós-graduação, construa espaços profissionais dignos e reconhecidos, mais além do aparelho de captura disciplinarizante submetido ao paradigma produtivista.


Alex Martins Moraes (mestrando PPGAS/UFRGS)